sexta-feira, 28 de março de 2014

Filosofando vs Poetando



             
            O CANTO DA NOITE
 
 
"É noite; agora eleva-se mais a voz das fontes. E a minha alma é também uma fonte.

É noite; agora despertam todos os cantos dos amantes. E a minha alma é também um canto de amante.

Há qualquer coisa em mim não aplicada nem aplicável, que quer elevar a voz. Há em mim um anelo de amor que fala a linguagem do amor.

Eu sou luz. Ah! se fosse noite! Mas é esta a minha soledade: ver-me rodeado de luz.

Ah! Se eu fosse sombrio e noturno! Como sorveria os seios da luz!

E também vos bendiria a vós, estrelinhas que brilhais lá em cima como pirilampos! E seria venturoso com vossos mimos de luz.                                    
Eu, porém, vivo da minha própria luz, absorvo em mim mesmo as chamas que de mim brotam.

Eu não conheço o prazer de receber, e frequentemente tenho sonhado que roubar deve ser ainda maior deleite do que receber.

A minha pobreza reside em que a minha mão nunca se cansa de dar, a minha inveja são os olhos que vejo esperando, e as noites vazias do desejo.

Ó! Miséria de todos os que dão! Ó! Eclipse do meu sol! Ó! Desejo de desejar! Ó! Fome devoradora na fartura!

Eles recebem de mim; mas, acaso lhes tocarei eu sequer a alma? Entre dar e receber há um abismo; e é muito difícil transpor o mais pequeno abismo.

Nasceu um homem da minha beleza: quereria prejudicar os que ilumino; quereria saquear os que cumulo de presentes: assim tenho ânsia de maldade.

Retirando a mão, quando a mão já se estende; vacilando como a cascata que vacila até na sua queda; assim eu tenho sede de maldade.

Tais vinganças meditam a minha exuberância; tais malícias nascem da minha soledade.

O meu prazer de dar morreu à força de dar; a minha virtude cansou-se de si mesmo por sua própria exuberância.

O que dá sempre, corre perigo de perder o pudor; aquele que reparte sempre, à forca de repartir acaba por se lhe calejarem as mãos e o coração.

Os meus olhos já se não arrasam de lágrimas ao ver a vergonha dos que imploram; a minha mão endureceu demais para experimentar o tremor das mãos cheias.

Para aonde foram as lágrimas dos meus olhos e a plumagem do meu coração? Ó! Soledade de todos que dão! Ó! Silêncio dos que brilham!

Muitos sóis gravitam no espaço vazio; a sua luz fala a tudo que é obscuro; só para mim emudeceu.

Ó! É a inimizade da luz contra o luminoso! Desapiedado, segue o seu caminho. Profundamente injusto contra o luminoso, frio para com os sóis, assim caminha todo o sol.

Como uma tempestade, voam os sóis por suas órbitas: é esse o seu caminho. Seguem a sua vontade inexorável: é essa a sua frialdade.

Ai! só vós obscuros e noturnos, que tirais o vosso calor do luminoso, só vós bebeis o leite balsâmico dos úberes da luz!

Ai! há gelo em torno de mim, gelo que queima as minhas mãos! Tenho uma sede que suspira por vossa sede!

É noite. Ai! Por que hei de eu ser luz? E sede do noturno! E soledade!

É noite... como uma fonte, brota o meu anelo — meu anelo de fulgor.

É noite: agora eleva-se mais a voz das fontes; e a minha alma é também uma fonte.

É noite: agora despertam todos os cantos dos namorados. E a minha alma é também um canto de namorado”.
 
Porque me apeteceu, e neste Canto mando eu:
"Assim falava Zaratustra."
 
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15 comentários:

  1. Por vezes chove e bem

    na língua dos amantes

    Que chova
    Bj

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    1. Verdade, Puma?

      Talvez, uma linguagem molhada que somente eles entendem.

      Como diz aquela canção brasileira: "Tomara que chova três dias sem parar"!!

      Beijo.
      :)

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  2. Friedrich Nietzsche defendia a ideia de que para libertar, o pensamento deveria ser livre de qualquer forma de controle cultural e moral.
    Portanto amiga Janita quem sou eu para julgar este estado de espírito :)

    beijinho

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    1. Amiga Fê,

      Liberdade tem de ser livre de qualquer controlo, senão já não é liberdade!:))

      Beijinhos!

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  3. Li-o há que séculos! :)
    Só faltava não mandarmos no nosso Canto! :)

    Abraço

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    1. :))

      Rosa dos Ventos...gosto de ti porque me compreendes! :-)

      Abraço.
      :)

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  4. É de noite. Ou pelo menos devia ser se não tivesse mudado a hora. Como é possível às 7 da noite ser de dia? Ah, maldita hora de verão. Antes fosse sempre de escuro a ver o sol pôr-se às 7 e 8 e 9 da noite. A minha alma sombria anseia pela hora de inverno. Apesar de, para dar uma volta até Cascais, até calha bem o sol pôr-se mais tarde.

    Assim falava Zé da Trouxa

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    1. Ora aí uma bela dissertação própria de uma alma em desassossego, Daniel...:)
      Ver o pôr-do-sol em Cascais ou no Estoril é coisa de gente que bebe o leite balsâmico dos úberes da luz...

      Mas voltando aos míseros escravos...Eu gosto desta mudança d'hora, Daniel!:)))

      Assim se responde ao Zé da Trouxa. eheh:))

      Um beijo!

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    2. Leite, só se for vegetal... ;)

      Eu acho que não devia mudar a hora. Para quê isto? O ponto do dia em que o Sol está mais alto deve corresponder ao meio dia. Será que muda a hora para haver um acerto ou é só para chatear? Podia ir investigar, mas não me apetece... ;)

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    3. Como bom vegetariano, só podia ser leite vegetal. De soja, né?

      Pode parecer-te esquisito, mas adoro quando a hora muda para o horário de Verão, ou seja, quando adianta!
      O dia passa mais rápido e saio do trabalho ainda com sol!!!
      Quando o sol está a pino é meio-dia...e quando está a chover??:))
      É tudo só para chatear...:))

      E como vão as coisas com o teu trabalho, Daniel? Isso é que importa, quer chova ou não!
      Dá notícias...

      Beijocas!

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    4. O leite pode ser de soja, arroz, amêndoa, aveia, you name it.

      Mas a hora mudar é terrível porque uma pessoa levanta-se uma hora mais cedo. E como detesto manhãs...

      Quanto à curta, é uma questão de esperar. É de notar que a minha curta é literalmente de produção zero e há por aí muita gente apoiada por produtoras... é uma luta desigual. Mas por outro lado, a minha foi feita por um filósofo... lol

      Adiós!

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  5. O canto da noite é um canto inquieto.

    Abraço grande

    (Van Gogh um dos meus favoritos)

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    1. Este Canto da Noite, é inquietantemente inquieto, Argos!
      Assim como, por vezes, nos sentimos....:(

      Essa 'Noite Estrelada' de Van Gogh, foi para contrabalançar. Já imaginava que gostasses.:)

      Beijinho e abraço grande.

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  6. Olá,Janita!

    Não é nada fácil, digo eu,descodificar o sermão de quem foi tão erudito pregador...

    Beijinhos amigos e boa semana.
    Vitor

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    1. Olá, Vitor!

      Agora fizeste-me rir!:)) Há 'sermões' difíceis de descodificar, mas este Canto é somente um lamento. Sabes que a gente erudita lamenta-se sem carpideirices!!:))

      Beijinhos amigos e óptima semana.

      (Espero que esteja tudo bem,Vitor!)

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